domingo, 24 de agosto de 2008

OS CANIVETES

Em certo estabelecimento comercial havia uma sociedade de utensílios domésticos extremamente estratificada. Cada um, cada um, cada dois, cada dois era a palavra de Lei. Tesoura não se envolvia com faca. Lugar de caneta era com caneta, e não se juntando com reles cadernos, isso era coisa de lápis e lapiseiras. As bússolas eram tidas como sábias. Todos os caminhos a todos mostravam. Mas foram gradualmente sendo substituídas pelos modernos GPS's até serem deslocadas para a seção de presentes. Ninguém tinha coragem de se meter com os isqueiros. Temperamento explosivo. Até os alfinetes eram fortes, afinal de contas, o que conta é a quantidade.

Mas a mais alta posição da hierarquia ficava com os canivetes suíços. Eles sim eram os donos do pedaço. Havia aqueles de zilhões de funções. Esses eram os mais procurados. Havia canivetes de todos os modelos. Até em forma de cartão. Considerados os modelos, ficavam com o centro da vitrine. Ninguém tinha permissão de falar com um canivete sem prévia autorização do conselho, que mandava e desmandava na loja.

Quando algum bichinho de pelúcia ofendia um chaveiro, eram os canivetes que decidiam de quem era a culpa. Nenhum relógio atrasava sem que os canivetes assim o definissem. Até os modernos Pen Drives tinham por eles um infindável respeito. Os livros da loja morriam de medo das lâminas afiada dos canivetes, tanto quanto o calor que emanava dos maçaricos culinários. E, pasmem, até mesmo os campeões de venda, os telefones celulares, pisavam macio na prateleira dos suíços. O fato é que os canivetes eram os caras.

Mas como em toda bela história, algo de ruim tem que acontecer, e sempre acontece em um belo dia, um belo dia um canivete daqueles simples, com só uma lâmina, soltou uma bomba no meio da elite:

-Não gosto de ser canivete. Prefiro ser um alicate.

-Como assim um alicate? - Inquiriu um gordo canivete de 20 funções. - Tu, um canivete, membro da mais alta camada da sociedade, prefere ser um mero alicate?

-Sim. Sei que os canivetes são extremamente respeitáveis e muito me orgulha ter gravado a laser essa marca, mas não sinto gosto algum em ser apenas um canivete sem maiores funções.

-Mas um canivete tem a mais nobre das funções. - Sofismou um eloqüente multifuncional prateado. - Somos responsáveis por manter a ordem e a justiça neste ambiente. Somos a mais alta casta, e, se assim nascemos, assim devemos perecer.

-O que é que o garoto viu em ser alicate? - Quis saber um conservadoríssimo camuflado.

-Sim, qual o motivo do garoto duvidar da excelência desta classe que há gerações é sinônimo de dever cumprido? - Indagou um clássico de cabo de osso queimado, o mais caro da loja.

-Apenas o simples fato de sentir no frio aço em que fui forjado a vocação para alicate. Sei que carrego comigo a responsabilidade de ser o melhor no que faço, afinal de contas, é para isso que fui feito. Sagrado é o nome que carrego carimbado a chumbo em mim, tão sagrado quanto a missão de perpetuar o significado desse nome. No entanto não consigo encontrar em mim mesmo, do meu cabo ao meu gume a arte de ser um canivete da casa dos suíços. O brasão que carregamos todos em nossos corpos é, e sempre foi, a mais firme garantia de eficácia e qualidade. Somos todos feitos com o mais puro aço. Esse aço que a todos nos forma, é o melhor aço do mundo, e as máquinas que nos fabricaram também o são. Longe de mim querer desonrar e desconsiderar toda essa maestria com que fomos feitos, porém desejeo do fundo de meu brilho metálico e da agudez de que corre por todo o meu fio expandir esse conceito de superioridade que tanto defendem vocês aos mais diversos universos. Tenho em mim todas as qualidades que todos vocês e sonho com toda a minha consciência de canivete ser, não o melhor, mas ao menos um bom alicate. E esse é um sonho cujos caminhos nem o mais afiado de vocês pode cortar, pois depende de mim, e de mim apenas.

E com esse discurso o jovem canivete virou as costas e foi em busca do seu sonho de ser alicate, e naquela loja, dele nunca mais se ouviu falar. O caso foi abafado pela elite dominante receosa de insurreições subversivas. Houve na loja aqueles que ouviram a história do canivete que queria ser alicate, e com ele concordaram. Houve na loja aqueles que ouviram a história do canivete que queria ser alicate, e o crucificaram. Houve na loja aqueles que da história nem tomaram conhecimento e seguiram suas vidas, tal e qual o faziam antes do ocorrido. Mas o canivete partiu. Em busca de seu sonho de ser alicate. Mas o canivete partiu.

4 comentários:

Anônimo disse...

Du!
eu adorei, pra variar!
apesar de não ter entendido o porque do canivete que resolveu ser alicate!
tenho o meu e adoro!
apesar de não ser suiço, nem de osso e nem ter 20 funções, já me livrou de poucas e boas!

beeijo e continue avisando assim que atualiza!
beeijo!

Anônimo disse...

fabulas...
mtoooo boas... realmente boas..
parabéns!!

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

você pode até achar estranho eu por aqui né, mas eu tava com uma curiosidade sabe, e resolvi ver que que voce escreve por aqui!

Só queria dizer que voce ta de parabéns porque os textos sao realmente MUITO bons!

só isso :)

beijo